Para cada R$1 investido em autocuidado através de medicamentos isentos de prescrição (MIPs), até R$7 poderiam retornar ao sistema de saúde caso a prática fosse estimulada no Brasil – pelo menos é o que diz um estudo da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para o Autocuidado em Saúde (ACESSA), publicado em 2017, no Jornal Brasileiro de Economia da Saúde (JBES).
Embora antigo e com algumas limitações, o estudo antecipava a importância de estratégias para ajudar a aliviar os custos do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos índices de mortalidade por mortes evitáveis – que, com a pandemia de Covid-19, atingiram um novo pico, pressionando ainda mais o setor de saúde.
Naquele período, o autocuidado tornou-se o caminho para quem temia tornar-se mais uma vítima das diversas situações extremas causadas pela crise sanitária. No entanto, a popularidade atual do termo ainda é frequentemente associada ao uso de roupas confortáveis, skincare com diversas etapas e outros produtos do mercado de beleza e de entretenimento.
Porém, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define o autocuidado como “a capacidade de indivíduos, famílias e comunidades de promover saúde”. Ou seja, trata-se de incentivar práticas para prevenir doenças, manter a saúde e lidar com enfermidades, com ou sem o apoio de um profissional de saúde. Em uma tentativa de impulsionar o termo, a entidade estabeleceu em 2011 que 24 de julho é o “Dia Internacional do Autocuidado”. A escolha da data é um trocadilho com o termo “24/7”, pela ideia de que cuidar de si deve ser uma prioridade diária – ou seja, 24h por dia, 7 dias por semana.
Para pensar em estratégias de autocuidado, a OMS estabelece sete pilares principais:

Mais do que uma data simbólica, o autocuidado representa uma estratégia concreta para aliviar os sistemas de saúde. “O autocuidado é uma maneira – talvez a única – de pôr o pé no acelerador para equilibrar as contas da saúde”, explica César Bentim, publicitário ex-IQVIA, consultor especializado no segmento de saúde e fundador da consultoria ARTEGIST Healthcare Consulting. A OMS reforça esse raciocínio ao destacar que estratégias eficazes de autocuidado são capazes de ampliar o acesso aos serviços de saúde, reduzir desigualdades e aliviar a sobrecarga dos sistemas nacionais.
Nesse sentido, um dos fatores de pressão sobre o setor é o fato de que 60% dos brasileiros só vão ao médico quando estão com sintomas e quadros clínicos graves, conforme mostrou um levantamento do Grupo Bradesco Seguros. Isso acontece porque “para boa parte da população – não só brasileira, mas no mundo inteiro – saúde é visto como a ausência de doença”, explica o consultor.
Bentim continua, esclarecendo que “na verdade, saúde é um estado de plenitude mental, físico e até espiritual, que as pessoas gozam desde o dia que nascem, até que elas enfrentem algum tipo de problema que exija uma intervenção não-própria, não-autossugestiva, mas ajuda de um profissional”.
Mudança de hábito
A OMS estima que 71% de todas as mortes do mundo são fruto de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs). Especificamente no Brasil, estima-se que cerca de 1,8 milhão de pessoas são internadas anualmente no SUS em decorrência dessas condições. Dentro desse grupo, estão condições como diabetes, doenças cardiovasculares, cânceres, doenças respiratórias crônicas e obesidade – que, embora possam ter influência genética, ainda são mais associadas a hábitos pouco saudáveis.
No entanto, a pandemia de Covid-19 pode ter sido o ponto de partida para uma mudança de hábitos. Em julho de 2020, a revista Veja Saúde e a Associação Brasileira de Medicamentos Isentos de Prescrição (ABIMIP) uniram-se para entrevistar 1.874 indivíduos (70% mulheres e 30% homens) para a pesquisa “Autocuidado em Tempos de Pandemia”. Entre os achados, destaca-se que:
- 69% das pessoas passaram a rever hábitos associados à saúde;
- 38% começaram a se preocupar mais com o bem-estar mental;
- 30% passaram a cuidar mais da saúde como um todo;
- 29% começaram a se alimentar melhor;
- 14% começaram a se exercitar mais;
- 13% passaram a dormir melhor;
- 7% reduziram o consumo de álcool;
- 1% parou de fumar.
Nesse sentido, vale reforçar que a época de realização dessa pesquisa era apenas o começo da crise sanitária e do isolamento social – que perdurou até maio de 2023 e maio de 2022, respectivamente.
Mesmo assim, atualmente os hábitos saudáveis parecem continuar ganhando força. A título de exemplo, vale destacar a ascensão da prática física e dos esportes. De acordo com o relatório anual de Tendências de Esportes do aplicativo Strava, a corrida foi o esporte mais praticado do mundo em 2024. Especificamente no Brasil, foram mais de 19 milhões de corredores, colocando o país como o segundo maior em número de atletas. O fenômeno também impulsionou um aumento de 29% no número de eventos de corrida de rua no Brasil.
Junto a tudo isso, uma pesquisa do Datafolha, divulgada em março de 2025, mostrou que 53% dos brasileiros dizem ter reduzido o consumo de bebidas alcoólicas. Os motivos para essa mudança de comportamento variam, mas 34% afirma ter parado por preocupação com a saúde.
Mas, para que o interesse pelo autocuidado em saúde continue crescendo, é necessário que tecnologias, produtos e políticas públicas com esse foco ganhem mais força.
Estratégias para promover o autocuidado
Existem diversos caminhos para ajudar a promover práticas saudáveis. No entanto, as prioridades iniciais incluem: acesso a informações de qualidade, ferramentas de monitoramento, orientação profissional e continuidade do cuidado.
A título de exemplo, uma política pública de destaque é o programa Saúde na Hora, implementado em 2019 com o intuito de ampliar o horário de funcionamento das Unidades Básicas de Saúde (UBS) para facilitar o acesso à atenção primária.
Junto a isso, há a questão da alfabetização em saúde (ou health literacy). Segundo uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) o nível de alfabetização em saúde — isto é, a capacidade de entender e aplicar informações sobre saúde — é considerado inadequado para cerca de 70% da população brasileira adulta, o que dificulta a adesão a práticas de autocuidado de forma segura e eficaz.
Na visão de César Bentim, essa é uma frente ainda pouco explorada pelas grandes marcas e pelo setor privado como um todo. O publicitário defende que diversas marcas – desde farmacêuticas até aquelas do ramo alimentício – têm espaço para fortalecer seus canais de comunicação e ajudar a educar a população em diversos temas.
Além disso, temos os medicamentos isentos de prescrição (MIPs), que aparecem como ferramenta de destaque quando o assunto é autocuidado em saúde. Embora ainda haja resistência quanto à sua utilização correta, a prática já faz parte da realidade cotidiana de muitos brasileiros. De acordo com uma pesquisa do Datafolha, 86% da população mantém MIPs em casa para o alívio de sintomas como febre, dor ou azia; e 73% utilizam esses medicamentos por considerá-los uma necessidade.
“A mulher que passou na farmácia, comprou o remédio certo para a cólica que tem todo mês e foi trabalhar é uma pessoa a menos no hospital. Isso entra na conta do absenteísmo, e é por isso que os MIPs devem ser vistos como ferramenta de saúde pública e não só como produto de prateleira”, afirma Bentim. Ele defende, no entanto, que o uso desses medicamentos esteja sempre vinculado à orientação técnica e à educação do consumidor. “Aquela frase ‘se persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado’ precisa ser mantida em qualquer comunicação. Não se trata de automedicação irresponsável, mas de autonomia com base em informação”, reitera.
Ainda nesse sentido, o publicitário ex-IQVIA destaca ainda a importância de não sobrecarregar o indivíduo com toda a responsabilidade sobre sua própria saúde, sem que o sistema ofereça condições mínimas para que ele possa cuidar de si. “No fim do dia, o custo [em relação à própria saúde] é do indivíduo. Mas e se essa pessoa não tiver acesso à informação, médicos, academias e alimentos saudáveis? É preciso institucionalizar o autocuidado para gerar impacto real”.
Projeto para promoção de saúde
Para pensar em outras formas de promoção de saúde, conversamos com o Dr. Samir Daher, médico especialista em medicina do exercício e do esporte, que idealizou o Método Vincero – aplicado no Programa de Promoção de Saúde do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (IAMSPE) e no Clube Pinheiros.
Há alguns anos, Daher criou o que hoje se chama Método Vincero (nome inspirado na ópera italiana Alba Vincero, com ideia de “vencer”). Vincero é tanto sua empresa quanto a metodologia aplicada no Programa de Promoção de Saúde implementado no IAMSPE e no Clube Pinheiros. O método inclui rastreio online de fatores de risco, educação em saúde e programas de exercício supervisionado por seis semanas, com frequência mínima de duas vezes por semana — tempo suficiente para que os participantes sintam melhora física e mental e adquiram autonomia para continuar após o período.
Para comprovar a importância do método, Daher formulou seu primeiro estudo sistematizado em 2007, com o objetivo de entender o impacto da prática física tanto na saúde das pessoas, quanto no sistema de saúde. Na época, convidou 100 idosos sedentários — dos quais 50 foram incluídos em um programa de atividade física supervisionada por um ano, enquanto os outros 50 permaneceram sedentários por opção própria. Ao final, o grupo que fez ginástica apresentou diferenças significativamente melhores em indicadores de saúde, com redução nas internações, atendimentos no pronto‑socorro e intervenções médicas.
Neste estudo, a conclusão foi de que “a cada um dólar investido em prevenção, se economiza três”, o que representaria um impacto econômico expressivo para o IAMSPE. Assim, em 2012 a diretoria da instituição aderiu ao modelo em larga escala, até sua consolidação e implementação em toda a rede.
Na prática, a adesão ao programa gerou:
- redução de dores;
- melhora na mobilidade;
- menor grau de ansiedade;
- e até mudança nos hábitos alimentares.
Ademais, o estudo original mostrou economia no sistema de saúde devido à redução de internações, cirurgias e atendimentos emergenciais.
O impacto foi visto principalmente para condições como obesidade, diabetes e artrose, visto que cerca de 40% dos pacientes melhoraram e adiaram a cirurgia. Já em casos como câncer de mama, por exemplo, houve redução nos sintomas associados à depressão e à baixa imunidade.
Com base nesses resultados, o programa foi finalista em uma premiação da Revista Veja Saúde, e passou a ser replicado em outros contextos: em empresas (para reduzir absenteísmo e sinistralidade) e no Clube Pinheiros, onde o rastreio hoje chega a 2 mil atletas, incluindo os de base (na faixa de 12 a 15 anos) e atletas olímpicos.
Através da abordagem multidisciplinar da Vincero – que une psicologia, nutrição, fisioterapia e medicina – o programa autorrelatou uma economia de 3 dólares para cada 1 dólar investido. Dessa forma, os números reforçam o impacto na saúde pública ao levar informação e exercício físico com supervisão.
O mercado de autocuidado em saúde
Por fim, pode-se dizer que ainda há muito espaço para desenvolver soluções relacionadas ao autocuidado em saúde. Nas palavras do consultor de saúde da ARTEGEIST: “Aqui está um segmento cheio de dor. As pessoas comem mal, dormem mal e não fazem atividade física”.
Embora existam possibilidades para mais políticas públicas e tecnologias, os principais produtos desse mercado ainda são os MIPs. Segundo dados da IQVIA, o mercado global de medicamentos isentos de prescrição ultrapassou US$183 bilhões em 2023, impulsionado por mudanças no comportamento dos consumidores e maior acesso à informação sobre saúde.
Na América Latina, esse segmento viu um crescimento de 7.7% no mesmo ano. Enquanto isso, no Brasil, segundo estimativas da Associação Brasileira da Indústria de Medicamentos Isentos de Prescrição (ABIMIP), o segmento de MIPs movimenta cerca de R$ 14 bilhões por ano. Quando considerados outros produtos de autocuidado, como vitaminas e suplementos, o mercado brasileiro de consumer health ultrapassou R$ 100 bilhões em 2024.
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